sábado, 4 de junho de 2016

111º Diário: Onde tudo começou.



Adicto.

Ao tentar fugir, encontrei um vício ainda mais grave em outra porta. E esta, com tanta indiferença me viciou até arrancar de mim qualquer traço de bom senso. Ela, de fato, não sabia que eu trocava todos os dias tudo o que tivesse ao meu alcance por ela. E é claro, fez com que a única coisa que me restasse nos bolsos ou no meu apartamento vazio fosse um segredo silencioso. Tal silêncio era capaz de aniquilar qualquer traço de ecos ensurdecedores que viessem a adentrar pelas frestas de minha porta.

Sete de abril.

Sob a guarda de uma árvore no meio de um inferno de pessoas correndo impulsivamente para todos os cantos, com faróis altos sobre nossos rostos, em uma noite recém caída, o excesso de palavras que guardava junto ao turbilhão de sentimentos que viviam a me ensurdecer efervesceram e transbordaram sutilmente pelos meus lábios, gota a gota, na tentativa de criar uma bela história entre nós dois. Afinal, eu era um adicto, mas ela não sabia. E quando caí em minha realidade, já era tarde: estava convulsionando em uma crise de abstinência, após uma semana sem poder trocar sequer uma moeda por mais uma fração deste poderoso ópio.

Já não havia mais silêncio ou segredo qualquer. Eu era um doente, viciado, morrediço, dentro de um apartamento vazio, relendo um velho bilhete guardado no bolso de meu único casaco que sobrou, o meu predileto. Tudo poderia resumir-se em "Você nunca vai entender". Era, talvez, a origem mal contada de um livro inteiro.

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"Quem sabe, eu morreria de vontade de ter uma overdose de você, mas você nunca vai entender. Ou talvez, eu tenho um ciúme devastador quando a vejo  dançando com a minha necessidade de provar mais alguns instantes, mas você nunca vai entender. Sim, eu sempre tive. Eu morria de ciúmes de você com o meu bom senso, mas você nunca vai entender."

E, após dois longos meses, passo a correr como um louco, um salteador, um pedinte, ou até mesmo um golpista, para poder arruinar um pouco mais de meu corpo com uma nova dose. E todas elas tem uma sensação diferente a me oferecer. Um novo sabor. Como se todas elas fossem um novo primeiro beijo. Em meio à fumaça de cada dose, sinto-me como se nunca houvesse provado tanta satisfação de uma só vez. Uma inundação de dopamina, taquicardia, tremores e suor em minhas mãos me fazem querer mais. E muito mais recebo em troca a sensação de que está acabando, de que tudo o que eu poderia provar a mais está virando pó entre meus dedos e dispersando-se ao vento. Como se não fosse o bastante, tenho a sensação de que ela não conhece o meu vício.

Alucinado como nunca, ouço a fumaça pedir para que eu não a deixe sozinha. Um breve esforço, mais uma dose. Você não faz ideia de que um dia tudo isso pode acabar.