quarta-feira, 5 de agosto de 2015

...or just one picture.



Deitado na cama, olhando a réstia de luz que vence a fresta da cortina. Poderia ceder aos encantos de aproveitar a deixa e o ócio e abrir aquela porta do armário. Talvez fazer de conta que a luz incide sobre a porta, como um sinal divino. Como se, por algum infortúnio, precisasse desviar a atenção de alguém para fazer o que realmente quero.

Lá dentro está a mais terrível história de amor, escrita a mão em um livro com palavras bem colocadas e uma caligrafia cuidadosa, como se alguém algum dia tivesse a coragem de tentar entendê-lo. Ele está dentro de um baú de madeira, junto a tantas cartas velhas, algumas letras de música e, não menos importante, algumas fotos. 

Ele está lá, fechado. Mas as vezes é como se, em um sussurro, pedisse para sair. Sair, conhecer o mundo, e ser conhecido por ele. Saber que dentro dele há um resto de cheiro de café com um bom perfume e uma promessa de nunca esquecer. Porque, afinal, você teria prometido nunca esquecer?

E quando olho, já estou sendo tomado por aquele aroma inconfundível, que se mistura a minha nostalgia e lembra um determinado perfume impregnado ao casaco emprestado em uma noite fria. Seria a mais pura definição do impossível dizer que eu olharia para o lado oposto e tentaria me esconder disso tudo, mas já é tarde.

Me arrasto para lá, como se tudo o que pesa em mim já fossem toneladas. Abro aquela porta, arrasto o baú para o lado de fora e, como o pior dos adictos, começo a folhear tudo o que está por ali. Carta por carta, história por história, foto por foto. E como em uma roleta russa, aguardo o momento em que aquela foto predileta irá aparecer e fatalmente me intoxicar.

Eu sei que, no fundo, você está lá.

É como voltar no tempo. Alguns segundos, quem sabe, e eu estaria prestes a encontrá-la. Alguns minutos, e eu estaria abrindo o velho baú. Algumas horas, e eu estaria olhando meu rosto no espelho, e admirando a harmonia da assimetria do meu rosto ao amanhecer. Alguns anos e eu, mais uma vez, prometendo não esquecê-la. 


sábado, 25 de julho de 2015

7912 Elmore Rd, Fruitland



Todo amor é o primeiro amor. Nunca se amou tanto quanto neste determinado momento. Nunca se amou de verdade. Nunca se amou. Afinal, é o primeiro amor. O primeiro beijo, a primeira noite. Sequer houve uma fuga, uma paixão nas entrelinhas. Esta é a primeira paixão, o primeiro infarto, a primeira morte lenta e prazerosa. 

No começo, promete-se nunca trocar, fugir, abandonar. Planeja-se a vida toda ao lado do primeiro amor, seja qual dos primeiros for. E no ápice, quando já não há mais para onde ir, percebe-se que há alguém que poderia levá-lo mais longe, a um custo menor de mortes. Isso porque quem ama - ou diz que ama, tanto faz - morre aos poucos. Abre mão de andar a pé, a sós, e só.

Toda fuga no fim das contas é mal planejada, pois sempre deixa marcas. E no final das contas intermináveis, percebe-se que está em um primeiro amor mais uma vez, seja qual dos primeiros for. Afinal, nunca correu tão longe!

Todo sonho é uma nova experiência, e na maioria das vezes é uma gota do gosto de voltar atrás, semelhante a uma gota de leite condensado em um quadro hipoglicêmico. Faz de conta que é um alívio mas quando desperta é um pesadelo vivo, sem a voz doce, sem o perfume ou o aconchego do abraço.

Todo adeus é a chance de gritar: Volte, imbecil! Mas a imbecilidade fala mais alto quando já estava pela hora da fuga. Quando se troca um pelo outro, e no fim das contas morre com o peso da culpa por não ter voltado atrás. O preto e branco valia, sim, o dobro. O triplo em uma noite do terceiro aniversário de uma quinta, no quinto do sétimo de dois milésimos décimo segundo. Um número perfeito em uma escala indecifrável de experiências. Apesar de tudo, é o primeiro.

Esta é a primeira vida, do primeiro amor, vítima da primeira morte. Talvez. Porque não se morre. Exceto quando, por ironia do destino - ou não! - o bilhete estava lá o tempo todo, na bifurcação do tronco de uma árvore. Aquele calafrio mata. E continua matando, com um doce perfume.

"One year later
Write me..."




quarta-feira, 8 de julho de 2015

Two steps closer (Outra velha história, e um café)



Uma noite em claro, ou duas. O tempo parecia andar vagarosamente entre as horas do meu relógio. Porém, meu sábado chegou, como a vida bem prometera. Não costumava ir ao Joe's Café durante a semana, mas a vontade de ir até lá para avisar o meu pessimismo de que ele estava certo quando disse que a correspondência da quinta de manhã não passava de mera coincidência ainda imperava.

Acordo cinco e meia da manhã de sábado e a insônia me dá um banho de água fria, cujo estrago é amenizado pela ansiedade de fazer plantão na minha mesa predileta naquele café. Tomo um banho quente, me visto, e me preparo para o vento frio que está lá fora. Uma chuva leve e desconsertante me traz à memoria uma sensação segura de um afago, um abraço, ou algo assim.

Apago as luzes, pego o meu casaco pendurado no porta-chapéu, e saio. Antes de descer o primeiro degrau, certifico-me de que carrego comigo aquele bilhete que me fez voltar no tempo, talvez uns quinze anos ou mais. É justo que esteja dentro do seu envelope, preservando aquele tão doce perfume.

Desço as escadas e saio à rua. Uma chuva delicada cai sobre a cidade. Em certos momentos parece um nevoeiro. A essas alturas são quase seis e meia da manhã e eu decido ir até meu destino a pé. Caminho por cerca de uma hora e encontro o café pouquíssimo movimentado. Por ter caminhado todo este tempo, já não sinto tanto frio. Em compensação meus pés doem e imploram por descanso.

Sento-me na mesa dos fundos do café, de costas para a porta, e aguardo alguém que me atenda. Peço um Cappuccino duplo e qualquer coisa para comer. Seria perfeito se ao menos pudesse acender um cigarro ali dentro.

Após quinze minutos refletindo sobre o que fazia sentado ali, em pleno sábado, ler e reler o meu bilhete cujo perfume misturava-se ao cheiro de café, passo a ouvir o mundo ao meu redor e por alguns instantes sinto uma intensa vertigem.

Apoio a xícara na mesa e, com a mão direita, continuo segurando o bilhete. Ouço, em meio à minha confusão, um carro que para em algum lugar próximo dali, uma porta fechando, e passos na calçada que talvez se aproximem. Em um curto espaço de tempo sou tomado pela sensação de que o perfume do bilhete está espalhado pela cafeteria toda, e em segundos de transe meus dedos sequer têm domínio sobre aquele singelo papel, que se solta e cai sobre a beirada da mesa.

Os passos continuam a aproximar-se, o perfume se propaga e uma voz doce termina de matar-me quando diz:

- Esperei ansiosa para reencontrá-lo, Gabriel!



quinta-feira, 26 de março de 2015

Uma velha história e um café.



Acordo um pouco cedo em uma manhã de quinta feira. Saio de meu quarto, lavo o rosto na pia do banheiro e continuo pelo corredor. Passo pela sala, pela porta fechada do apartamento e chego a cozinha. Coloco a água para esquentar e passar o meu café. Abro a cortina e, pelo vidro da janela, percebo que está chuviscando, apesar de ver o brilho do sol refletido nas janelas do prédio do lado oposto da rua. Lá na calçada passam poucas pessoas, algumas escondidas sob guarda-chuvas, outras caminhando pelo meio do calçamento molhado contemplando o aparente desequilíbrio dos fatos. Chuva ou céu azul? Melancolia ou esperança? Choro ou riso? Afinal, quem não sabe lidar com as diferenças de um mundo que flutua como uma leve bailarina no meio do universo, perde-se na tentativa de encontrar-se.

Antes que a água ferva, coloco café o suficiente para matar-me por mais um dia, misturo e passo no coador. No final, sirvo uma xícara, pego o que vier para acompanhar a minha bebida - jamais o contrário! - e sento à mesa, como um ritual. Termino de comer, mas ainda resta café para a manhã toda. Limpo o que ficou pelo caminho, e sirvo outra xícara de café.

Com minha xícara deste ouro negro na mão, saio da cozinha. Na sala, a esquerda, eu saio do apartamento. Caminho oito passos até a escadaria em espiral, à direita, e desço os degraus até o térreo. Hoje poderia percorrer este caminho de olhos fechados.

Dou bom dia ao porteiro, e ele me avisa:

- Chegou carta para o senhor!

Com certa surpresa, pego o envelope sem remetente, agradeço e, por alguns instantes, fico paralisado com a mistura de saudosismo e nostalgia que vejo cair sob forma de chuva através da vidraça da porta do prédio na rua logo a frente. Viro às costas e volto a subir as escadas ao meu apartamento.

Quando entro, tiro meu calçado a beira do tapete, coloco a xícara de café vazia sobre a mesa de centro, e sento no sofá, com o envelope na mão. 

Causa certa estranheza ver que não havia remetente, muito menos meu sobrenome naquela carta. No endereço não havia o meu apartamento, apenas o número do edifício. Talvez seja mero engano do porteiro. Abro, então, o envelope com muito cuidado para poder restituí-lo ao verdadeiro dono, caso não seja eu. 

Ao passo em que o papel se rompe, sinto um perfume delicado. Algo que se não conheço, talvez tenha sonhado um dia. Retiro o papel que está com apenas uma dobra, e de dentro dele cai o cartão com o endereço de um café que eu frequentava em minha juventude. 

Ansiosamente abro o bilhete, que com uma belíssima caligrafia, me diz:
"Se em pouco mais de quinze anos todas aquelas bebidas não te mataram, muito menos o cigarro, o café, o amor ou a música, espero ter encontrado finalmente o endereço de um velho amigo que, como um anjo, me ajudou a fugir de mim mesma para encontrar algo melhor em meu caminho. 

Um Abraço Perpétuo,
A."


quarta-feira, 18 de março de 2015

Mr. Walker



Senhor Walker é o culpado de todos os problemas do mundo. Seu nome estava riscado nas mãos de qualquer pessoa apaixonada que repetiu o feito em uma folha de papel e jurou: "Meu, só meu!". Era mister estar presente o tempo todo, ao invés de escrever cartas que sequer ele mesmo leria. Para que tudo isso? Mr. Walker criou o amor mais perfeito dentro de si, despedaçado pela fuga, pela culpa, pela arbitrariedade de uma milícia que queria sequestrar os seus sonhos. E conseguiu.

Não poderia deixar de culpá-lo pelo maldito pessimismo envolto por uma xícara de café e alguns sutis infartos a cada dose. Foi ele quem ensinou o mundo todo a escrever e desenhar coisas tão escondidas quanto o próprio esconderijo, a própria letra, os próprios traços. Afinal, ele sabia de fato todas as histórias guardadas naquele garrancho todo, em folhas velhas, mas mentia ao dizer que eram devaneios. Walker sabia que um dia sentaria confortavelmente em uma cadeira elétrica caso alguém descobrisse a carga de segredos que jurou guardar.

Tão importante quanto os outros problemas de Mr. Walker é a sua vocação para a indiferença. Outrora despediu-se em prantos para um partir longínquo, que reservaria um canto qualquer para fumar um cigarro e lembrar dos tempos em que a paixão era o suficiente para deixá-lo sóbrio. No entanto, ao menor deslize do Rei, este nobre cavalheiro rendeu-se à falta de amor, para esquecer-se do que já não o traria mais palavras nobres ou uma súplica ao não abandono.

Mr. Walker é o culpado de todos os problemas do mundo. Foi ele quem deixou o pobre garoto na chuva naquele pátio enorme, tentando sintonizar um rádio a fim de ouvir a voz de sua amada. E certo dia, não ouviu.

Walker já não mora mais ali, na guerra. Hoje está em outro lado do mundo quem sabe, com um colete azul marinho em meio a fortunas e pessoas, esperando que o tempo carregue ao mar aquele caderno velho que esqueceu na beira da praia, com a história do seu amor.

Senhor Walker é, de fato, responsável por todos os problemas de todo o mundo do mundo.







quarta-feira, 4 de março de 2015

An arsonist choir.



Eram tempos remotos, em uma vida como  qualquer outra das que se assiste em um televisor de tubo em preto e branco. Uma dama que sequer sabia o nome - ninguém o sabia - me furtava a liberdade de olhar para qualquer canto, através do brilho viciante de seus olhos. Mesmo sem saber, todos me diziam: Fuja enquanto há tempo!

Trágica era a sensação de dispnéia causada pela sua presença, o seu perfume, o seu charme. Era um sonho que andava em um corpo fora do meu em um rosto levemente familiar, um devaneio venenoso, sagaz. Ou talvez um amor perfeito, invejável? Afinal, todos diziam: Fuja, é uma cilada!

Ao abrir a porta do corredor em um fim de tarde, deparo com a sua imagem convidando-me a passar ao outro lado, a provar do seu vinho, do seu sangue, dos seus berros incessantes em meu ouvido em uma trilha sonora envolvente e ensurdecedora. Não sabia mais qual era meu fôlego em meio à sua astúcia, ao seu perigo. Já sabia há tempos que de sonhos não se foge!

Um pavio, uma fagulha. e o mundo inteiro pegou fogo antes de me acordar. E voltar para o lado de cá do corredor, a alguns degraus abaixo do paraíso queimou minha alma por inteira por algumas vidas. Saber que era uma armadilha para me escravizar não foi o suficiente para deixar-me arrependido.

Ao toque da campainha quando acordei do coma que aquela euforia me causou, percebi que o apartamento já estava vazio há anos e que meu mergulho de cabeça naquela aventura de pedra teria realmente valido a pena.

(Gabriel Derlan, 1990)


segunda-feira, 2 de março de 2015

O Ladrão de Cartas (Who We Are - II)



Pudera ele não ter lido aquelas frases!

Tal qual um espírito, rodeava desapercebido as caixas de correspondências a fim de ler o que não lhe competia. Pouco importava se eram contas, romances, ou até um cartão postal de um primo distante, mostrando estar muito bem vivo. Todas eram abertas no vapor de sua chaleira, enquanto fervia água para seu chá de poejo. Todas eram devolvidas na calada da noite, ao mesmo tempo em que novas eram roubadas.

Roubando cartas, sustentava seu amor - não tão - platônico por uma donzela que morava a dez quarteirões. Poderiam não conhecer um ao outro. Mas ele já conhecia o melhor e o pior do seu íntimo; Ela conhecia o seu rosto, de tanto espiá-lo de madrugada abrindo a caixa em seu portão.

Ele não teria estragado toda a história se não roubasse as suas cartas.

Mesmo não sendo conhecido, enciumava-se quando a moça era contestada pela sua solidão, que ainda não havia sido morta sequer por um medíocre ladrão de cartas. Ele, o príncipe gatuno, era massacrado todos os dias por palavras que nunca deveria ter lido a seu respeito.

Tudo o que precisava realmente, era ler os pensamentos dos remetentes para entender toda a história. Porque afinal, ela não merecia sentar-se a mesa para fumar cigarros e beber fermentado de milho - tudo isso é tão barato! Muito mais proveitoso seria um jantar a luz de velas com um prato mal feito e um chá descongestionante.

Mas para que entender mentes quando o desatino fala mais alto?









quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

As an old memory



Sonhei com você esta noite. Foi como se tudo estivesse bem novamente.

Apareci misteriosamente em seu quintal, mas havia mais de uma casa lá dentro. Cheguei a perguntar-me: "Há quanto tempo não venho aqui?". Lembrei da última vez, há tantos anos, em um dia chuvoso no qual dei muito valor ao que chamava de "tapas de luva". Contudo, não sabia o que era pior: Ter marcas no rosto ou no peito, profundamente, onde ninguém vê.

Lá dentro eu bati palmas, e aquela multidão toda veio matar a saudade. Ninguém, porém, poderia saber que eu estava ali. E no meio de tanta euforia por meu retorno tardio, eu a vi na porta. E quando veio ao meu encontro para um abraço indiferente, senti o aperto por ter fugido tão cedo. Apesar de tudo, agradeci. Não sabia mais se em meus olhos haviam lágrimas ou um buraco negro, ou apenas a fotografia de nós dois.

Dei-lhe um beijo de despedida no que parecia um túnel ao sul de seu jardim e mais uma vez fugi. Já era noite, e ninguém poderia saber que eu estive lá, com você, o tempo todo! 

Quando cheguei em casa, acordei. Caí da cama e me joguei em um velho baú de madeira, dentro de minha estante, no qual guardava aquele velho caderno de histórias. Afinal, nada mais justo do que relembrar tudo o que você me fez escrever dia após dia, mesmo após a minha fuga. Junto ao caderno, estava um disco com músicas que lembravam a nossa história, que eu fiz questão de ouvir mais uma vez.

Porém, tudo foi apenas um sonho.




quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Who We Are - I



É uma madrugada como todas as outras. Quem me dá o sono é uma taça e meia de um bom e puro vinho. Quem me acalma é a prece. E em alguns segundos despenco em um sonho onde tudo está por um fio. Uso minha calça predileta, uma camisa branca com gola e botões em azul e caminho em direção ao meu casaco, que relaxadamente deixei no porta chapéu na entrada do apartamento.

A cada passo que dou, sinto que meu corpo se transforma. Me sinto mais jovem, mais fraco, mais imaturo. Ao colocar as mãos em meu casaco, preciso apoiar-me no trinco da porta e percebo que já não sei andar. Ridículo para um cavalheiro em meados de quatro décadas.

Meu chão se transforma em um mar e sou afogado por uma miserável dama de pés sujos a quem confiei as minhas chaves.

Não posso deixar ser morto por ela.

Quando olho ao meu redor, vejo um cenário de guerra. Uma batalha que desde o começo já está perto do fim - pelo menos em minha mentira, uma espécie de conforto. Meus discos estão ao chão, minha garrafa de vinho quebrada, e os sentimentos de uma vida toda prostituídos a um ódio sem remédio, fruto daquele olhar provocante com leve gosto de vitória.

Ao tentar feri-la com um dos estilhaços de tudo o que deixei cair por tamanho descuido, acordo. Acordo e vejo que não foi desta vez, mesmo depois de quase três décadas dessa rotina suja. Mesmo depois de ter perdido quem amo sem encontrar o verdadeiro perdão em uma correspondência roubada.

Acordo e vejo que a minha única certeza ainda não me matou.

(Short Memories, Gabriel Derlan)