quinta-feira, 26 de março de 2015

Uma velha história e um café.



Acordo um pouco cedo em uma manhã de quinta feira. Saio de meu quarto, lavo o rosto na pia do banheiro e continuo pelo corredor. Passo pela sala, pela porta fechada do apartamento e chego a cozinha. Coloco a água para esquentar e passar o meu café. Abro a cortina e, pelo vidro da janela, percebo que está chuviscando, apesar de ver o brilho do sol refletido nas janelas do prédio do lado oposto da rua. Lá na calçada passam poucas pessoas, algumas escondidas sob guarda-chuvas, outras caminhando pelo meio do calçamento molhado contemplando o aparente desequilíbrio dos fatos. Chuva ou céu azul? Melancolia ou esperança? Choro ou riso? Afinal, quem não sabe lidar com as diferenças de um mundo que flutua como uma leve bailarina no meio do universo, perde-se na tentativa de encontrar-se.

Antes que a água ferva, coloco café o suficiente para matar-me por mais um dia, misturo e passo no coador. No final, sirvo uma xícara, pego o que vier para acompanhar a minha bebida - jamais o contrário! - e sento à mesa, como um ritual. Termino de comer, mas ainda resta café para a manhã toda. Limpo o que ficou pelo caminho, e sirvo outra xícara de café.

Com minha xícara deste ouro negro na mão, saio da cozinha. Na sala, a esquerda, eu saio do apartamento. Caminho oito passos até a escadaria em espiral, à direita, e desço os degraus até o térreo. Hoje poderia percorrer este caminho de olhos fechados.

Dou bom dia ao porteiro, e ele me avisa:

- Chegou carta para o senhor!

Com certa surpresa, pego o envelope sem remetente, agradeço e, por alguns instantes, fico paralisado com a mistura de saudosismo e nostalgia que vejo cair sob forma de chuva através da vidraça da porta do prédio na rua logo a frente. Viro às costas e volto a subir as escadas ao meu apartamento.

Quando entro, tiro meu calçado a beira do tapete, coloco a xícara de café vazia sobre a mesa de centro, e sento no sofá, com o envelope na mão. 

Causa certa estranheza ver que não havia remetente, muito menos meu sobrenome naquela carta. No endereço não havia o meu apartamento, apenas o número do edifício. Talvez seja mero engano do porteiro. Abro, então, o envelope com muito cuidado para poder restituí-lo ao verdadeiro dono, caso não seja eu. 

Ao passo em que o papel se rompe, sinto um perfume delicado. Algo que se não conheço, talvez tenha sonhado um dia. Retiro o papel que está com apenas uma dobra, e de dentro dele cai o cartão com o endereço de um café que eu frequentava em minha juventude. 

Ansiosamente abro o bilhete, que com uma belíssima caligrafia, me diz:
"Se em pouco mais de quinze anos todas aquelas bebidas não te mataram, muito menos o cigarro, o café, o amor ou a música, espero ter encontrado finalmente o endereço de um velho amigo que, como um anjo, me ajudou a fugir de mim mesma para encontrar algo melhor em meu caminho. 

Um Abraço Perpétuo,
A."


quarta-feira, 18 de março de 2015

Mr. Walker



Senhor Walker é o culpado de todos os problemas do mundo. Seu nome estava riscado nas mãos de qualquer pessoa apaixonada que repetiu o feito em uma folha de papel e jurou: "Meu, só meu!". Era mister estar presente o tempo todo, ao invés de escrever cartas que sequer ele mesmo leria. Para que tudo isso? Mr. Walker criou o amor mais perfeito dentro de si, despedaçado pela fuga, pela culpa, pela arbitrariedade de uma milícia que queria sequestrar os seus sonhos. E conseguiu.

Não poderia deixar de culpá-lo pelo maldito pessimismo envolto por uma xícara de café e alguns sutis infartos a cada dose. Foi ele quem ensinou o mundo todo a escrever e desenhar coisas tão escondidas quanto o próprio esconderijo, a própria letra, os próprios traços. Afinal, ele sabia de fato todas as histórias guardadas naquele garrancho todo, em folhas velhas, mas mentia ao dizer que eram devaneios. Walker sabia que um dia sentaria confortavelmente em uma cadeira elétrica caso alguém descobrisse a carga de segredos que jurou guardar.

Tão importante quanto os outros problemas de Mr. Walker é a sua vocação para a indiferença. Outrora despediu-se em prantos para um partir longínquo, que reservaria um canto qualquer para fumar um cigarro e lembrar dos tempos em que a paixão era o suficiente para deixá-lo sóbrio. No entanto, ao menor deslize do Rei, este nobre cavalheiro rendeu-se à falta de amor, para esquecer-se do que já não o traria mais palavras nobres ou uma súplica ao não abandono.

Mr. Walker é o culpado de todos os problemas do mundo. Foi ele quem deixou o pobre garoto na chuva naquele pátio enorme, tentando sintonizar um rádio a fim de ouvir a voz de sua amada. E certo dia, não ouviu.

Walker já não mora mais ali, na guerra. Hoje está em outro lado do mundo quem sabe, com um colete azul marinho em meio a fortunas e pessoas, esperando que o tempo carregue ao mar aquele caderno velho que esqueceu na beira da praia, com a história do seu amor.

Senhor Walker é, de fato, responsável por todos os problemas de todo o mundo do mundo.







quarta-feira, 4 de março de 2015

An arsonist choir.



Eram tempos remotos, em uma vida como  qualquer outra das que se assiste em um televisor de tubo em preto e branco. Uma dama que sequer sabia o nome - ninguém o sabia - me furtava a liberdade de olhar para qualquer canto, através do brilho viciante de seus olhos. Mesmo sem saber, todos me diziam: Fuja enquanto há tempo!

Trágica era a sensação de dispnéia causada pela sua presença, o seu perfume, o seu charme. Era um sonho que andava em um corpo fora do meu em um rosto levemente familiar, um devaneio venenoso, sagaz. Ou talvez um amor perfeito, invejável? Afinal, todos diziam: Fuja, é uma cilada!

Ao abrir a porta do corredor em um fim de tarde, deparo com a sua imagem convidando-me a passar ao outro lado, a provar do seu vinho, do seu sangue, dos seus berros incessantes em meu ouvido em uma trilha sonora envolvente e ensurdecedora. Não sabia mais qual era meu fôlego em meio à sua astúcia, ao seu perigo. Já sabia há tempos que de sonhos não se foge!

Um pavio, uma fagulha. e o mundo inteiro pegou fogo antes de me acordar. E voltar para o lado de cá do corredor, a alguns degraus abaixo do paraíso queimou minha alma por inteira por algumas vidas. Saber que era uma armadilha para me escravizar não foi o suficiente para deixar-me arrependido.

Ao toque da campainha quando acordei do coma que aquela euforia me causou, percebi que o apartamento já estava vazio há anos e que meu mergulho de cabeça naquela aventura de pedra teria realmente valido a pena.

(Gabriel Derlan, 1990)


segunda-feira, 2 de março de 2015

O Ladrão de Cartas (Who We Are - II)



Pudera ele não ter lido aquelas frases!

Tal qual um espírito, rodeava desapercebido as caixas de correspondências a fim de ler o que não lhe competia. Pouco importava se eram contas, romances, ou até um cartão postal de um primo distante, mostrando estar muito bem vivo. Todas eram abertas no vapor de sua chaleira, enquanto fervia água para seu chá de poejo. Todas eram devolvidas na calada da noite, ao mesmo tempo em que novas eram roubadas.

Roubando cartas, sustentava seu amor - não tão - platônico por uma donzela que morava a dez quarteirões. Poderiam não conhecer um ao outro. Mas ele já conhecia o melhor e o pior do seu íntimo; Ela conhecia o seu rosto, de tanto espiá-lo de madrugada abrindo a caixa em seu portão.

Ele não teria estragado toda a história se não roubasse as suas cartas.

Mesmo não sendo conhecido, enciumava-se quando a moça era contestada pela sua solidão, que ainda não havia sido morta sequer por um medíocre ladrão de cartas. Ele, o príncipe gatuno, era massacrado todos os dias por palavras que nunca deveria ter lido a seu respeito.

Tudo o que precisava realmente, era ler os pensamentos dos remetentes para entender toda a história. Porque afinal, ela não merecia sentar-se a mesa para fumar cigarros e beber fermentado de milho - tudo isso é tão barato! Muito mais proveitoso seria um jantar a luz de velas com um prato mal feito e um chá descongestionante.

Mas para que entender mentes quando o desatino fala mais alto?