quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Relapse



No momento em que tudo o que deveria abandonar resumia-se em fumaça aos meus olhos, senti em mim a segurança de que enfim seria livre.
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Findo o Santo Rito, escrevo em um sucinto bilhete tudo o que era digno de ser queimado em frente ao enorme crucifixo no altar daquela capela. Não era simples a tarefa de admitir em palavras aquilo que, há tanto tempo, norteava os meus passos.

Em meus passos até o fogo que consumia os mais obscuros segredos de todos aqueles que ali estavam, buscava no mais profundo de meus pensamentos o desejo de aprisionar-me ao destino que havia sido desenhado para minha história.

Ao passo em que o papel queimava, sentia em mim a certeza de que enfim poderia caminhar desprendido de meus vícios de outrora, e do castigo que aquela fuga me propusera há anos e anos atrás.

De fato, o último adeus era como uma estranha certeza de que nos veríamos outra vez. Ver seu corpo em paz, ornamentado em um leito que, quase forçado, tentava ilustrar o paraíso que havia me apresentado décadas atrás, me fazia em alguns momentos desacreditar que todo aquele ritual era real.

Acendi, pois, uma vela a fim de não me ser representado como um forasteiro, apesar de realmente sê-lo. Coloquei meu último bilhete sobre suas mãos. Era de fato o nosso fim.

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Perdoai minha fuga. Perdoai meu medo. Perdoai minha pequenez. Não menti quando te amei. Não menti quando abracei. Não menti quando a beijei.
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Em certo instante, tive a impressão que tudo o que tentava abandonar estava agarrado em mim, como um eterno vício. Toco em suas mãos tomadas pelo frio e relembro seu olhar distante. Apesar de estar tão perto, sequer ouviria quando eu a chamasse pelo nome.

Tudo o que tinha naquele momento soturno era, tão somente, as lembranças que carregava comigo. Nossas aventuras, nossos mundos, nossa confissão de um verdadeiro amor. De fato, tudo o que um dia vivemos, tornou-se um perfeito epitáfio em nosso último adeus.

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Abro outra dose de um bom veneno e, astuto que era, este toma meu bom senso como refém de um eterno vinho que me fazia, aos poucos, acostumar a sua partida.


man in the box

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Memories from an arsonist choir.



Abraço-a forte, como se algo quisesse tirá-la de meus braços. As curvas de seu desenho envolto por minha mais plena insânia torna meu bom senso em uma bomba-relógio.
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Procurei-a por diversas vezes, mesmo sem saber ao certo o seu nome. O máximo que poderia me auxiliar em meus devaneios era o retrato de seu sorriso estampado em uma boa lembrança naquele café.

Não me atrevia a contar todas as tentativas de reencontrá-la. Tal qual naquele dia, sentava-me no mesmo banco de frente para a porta, com um forte e amargo café expresso acompanhado por qualquer outra coisa, arriscando-me a acreditar que um dia a veria outra vez.


A cada estalo ensurdecedor do ponteiro de meu relógio em meio ao caos que se formava, percebo que, apesar de o mundo todo julgar ser uma cilada inexorável, se pudesse olhar outra vez em seus olhos, não hesitaria em embeber-me em sua astúcia.

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Tudo o que tinha de nós dois era o recorte de um velho jornal, de quando nos vimos pela última vez.
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Com os olhos fechados por alguns instantes, sinto meu rosto contrair-se em um discreto sorriso, ao trazer à memória a sensação de euforia de tê-la em meus braços outra vez. 

Sabia muito bem que alimentar o vazio que a sua ausência me provocava, era tão somente mais uma maneira de fazer-me morrer aos poucos.

You Can't Fix This