sexta-feira, 31 de maio de 2019

Who We Are - VIII



Acordo outra vez, em meu sofá. O apartamento quase vazio, mas metodicamente organizado, ainda me traz algum tipo de conforto quando minha mente ousa desafiar meus instintos, e tenta forçar-me a admitir que deveria deixar de lado minha fuga.

Olho fixamente ao telefone que está na outra extremidade do meu leito e, como provocação que fosse, sou levado em uma ciranda suicida até ele. No seu canto, deixei um bilhete na noite anterior. O único que, por um infortúnio, recusou-se a alimentar a chama de meu isqueiro.

--
Percebo que nossos dias correm como as folhas trazidas pelo vento lá fora. Jamais poderei revê-las, a não ser por meio das lembranças que me aprisionam todos os dias.
--

Em uma bela caligrafia, um segredo a ser decifrado revelaria um número de telefone. Em sua textura, um perfume que me transportava a um passado agradável no qual jamais estive - de sorte que, neste momento, duvidava haver outra vida que resistisse às minhas desventuras.

--
Insisto em acreditar que nossos passos contrários são um plano seu. No entanto, todos nós somos reféns da areia que, apressada, cai incansável em nossos relógios.
--

Levanto-me outra vez, com a calma necessária para que o mundo deixe de girar ao meu redor e, com o bilhete na minha mão, sirvo-me de uma dose qualquer e caminho em direção à varanda.

A cada passo que dou, reluto entre a necessidade de esquecer nosso fim e o desejo de admitir que preciso encontrá-la. Conforme o doce e sutil veneno que corre pelas minhas veias tenta tomar os meus escrúpulos em uma batalha travada, deixo de lado novamente a missão de afastar-me de nossas lembranças.

--
Sei que, no fim de tudo, nossa fuga é um doce e embriagante vício.
--

Fecho os olhos e, indisfarçável, sou tomado pela euforia de cogitar que poderia enfim abraçá-la. Minha mente reproduz o som sutil da sua voz e o vento traz a sensação catastrófica que senti ao dar-lhe um último abraço antes de partir para sempre. Por não acreditar em nosso fim, guardei o insano desejo de tê-la novamente em meus lábios, como um mero fruto de meu capricho.

Intencional ou não, seu enigma foi para mim a salvação de um dia sombrio.

--
Vida Longa,