quinta-feira, 22 de maio de 2014

Presente, Abraço, o Mesmo



Leve um casaco com você, minha filha. Quem sabe faça frio por lá. Não volte tarde, e cuide-se com seus amigos por aí. Divirta-se e tire fotos por lá. Mamãe ama você, não esquece. Sua irmã não vai hoje, tudo bem?

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Naquela noite eu não fui seu par. Mas estava gloriosa em um vestido preto e comprido. Era algo comportado que escondia sua ira com tudo ao redor. Não sabia o que a desapontava. Buscava saber, mas era inacessível. É tarde.

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Eu disse a ela: não vá hoje, meu amor. Poderíamos aproveitar a virada da noite com um filme ou outra coisa qualquer. Uma bebida quente, um cobertor aconchegante, só nós dois. Que Deus a proteja.

Minha querida, não se sabe o dia de amanhã. Ainda há tempo para voltar. O eterno Pai te espera de braços abertos, porque sempre te amou antes de que você nascesse. Você é importante para todos nós, nunca esqueça.

Você vai no sábado a noite? Será incrível, in-crí-vel. Não há nada melhor do que tomarmos um porre, e virarmos a noite aos risos e às festas. A vida é curta e precisamos aproveitá-la ao máximo! Venha conosco, não vai se arrepender!

Senti um aperto no meu peito. Ao mesmo tempo em que tinha vontade de estar com eles, sabia que por algum motivo deveria ficar em casa naquela noite.

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Sabe, minha amiga. Não esquece do Pai. Ele te ama, e quer cuidar de você. Não há prazer tão grande como estar segundo a vontade dele. Você conhece a verdade: não se deixe influenciar pela mentira!

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A culpa não é da estrada. A culpa não é dos deuses. A culpa não é de Deus. Todos dançaram sobre uma imensa poça de sangue, mas ninguém assumiu a culpa de arrastá-la para a luz, para as árvores, para o chão.

Todos enfileirados a um último adeus em um rosto já sem forma. Tão bela e tão frágil. Nem todos quiseram ou puderam estar lá. Haviam os que estavam em leitos de hospital. Haviam os que ainda não haviam acordado de um pesadelo ruim. E outros como o velho Joe, que preferiam não dar o último adeus, para que a vida estivesse ilusoriamente eterna enquanto sua memória estivesse sã.

Descanse em Paz.

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terça-feira, 20 de maio de 2014

The Cross



Pai nosso que estás no céu e também aqui. Jurava ser a primeira opção a mais longínqua, té que me deparei com suas marcas na areia ao lado de meus próprios passos quando ninguém mais estava ao meu redor. Não retire seu olhar de perto de mim, pois já não consigo dissociar sua presença de meus dias de céu azul e bonança.

Santificado seja o vosso nome, tal qual o meu está borrado da mais suja lama. Quem sou eu para que alguém como tu esteja por perto? Sinto-me pequeno com a sua grandeza. Mas isso é um motivo a mais para sentir-me descansado e contente em ser um pote de barro sem valor algum, que transporta o Seu ouro.

Venha a nós o teu Reino, ou tire-me logo daqui. Já cansei de tantas vezes que insisti em estar longe, tão longe. Que um dia eu possa ser suficientemente sábio a ponto de viver o teu reino aqui, e não esperar a morte chegar para então ter a pretensão de estar contigo por mil anos.

Seja feita a vossa vontade, e nunca mais a minha. Aquelas poças de sangue nas quais dancei já não fazem tanto efeito em minhas noites de festa. Não entendo como tantas vezes te culpei pelas minhas próprias falhas. Se quem amávamos partiu por nossas próprias influências, não foi tua vontade. Que a minha vontade esteja morta, para que ninguém mais se vá por minha culpa.

Assim na terra como no céu eu sinto tuas mãos gigantescas e cuidadosas mudando as coisas de lugar. Temporais inoportunos que deixam o meu céu em preto e branco não são mera coincidência de minhas loucuras. O pôr do sol alaranjado em fusão com tantas outras cores ao fim de uma tempestade que durou a vida toda também não é um mero devaneio ao qual me dedico descrever aqui. 

O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Mas tudo o que vem de ti é muito além do que eu já pude vislumbrar até aqui. Sinto que o vazio outrora presente, foi embora quando você me abraçou. A minha fome por um aconchego é aliviada a cada vez que te encontro por aqui. Quando penso que estás longe, você vem e me abraça forte como um pai, como um bom pai.

Perdoai as nossas ofensas, assim como perdoamos os que nos ofendem. Tal qual uma criança eu tropeço a cada novo degrau. Mesmo sabendo que posso ficar cheio de marcas no final das contas, eu não consigo ficar em pé. Sei muito bem que você não quer que estejamos cheios de lama, mas insisto: perdoa-nos. Admito que apesar das tentativas de parecermos monstruosamente grandes e fortes, somos pequenos e falhos.

Não nos deixe cair em tentação, pois a dor é imensa. Melhor seria se caíssemos em um vale de espinhos, ou em uma imensa caixa de pregos. Quando o erro me cativa, minha culpa me corrói. Peço seu colo, mas a dor custa a  passar. Não por tua vontade, mas por consequência de minhas teimosias, de meus instintos.

Livra-nos do mal, para que tenhamos mais tempo contigo. Sei que desde que te conheci, não ando mais sozinho. Você e muitos outros abaixo de ti estão ao meu redor. Sei também que há outro, como um leão que ruge rodeando este cerco de muros altíssimos. Ele quer me devorar, mas sabe que o seu amor por mim é grande mesmo antes de eu estar aqui. 

Teu é o Reino e acima de ti não há nenhum outro. Somos pequenos e andamos na palma de sua mão, e temos tudo o que vem de ti. Nada nos falta se o nosso rei estiver presente. Tua é a honra, e a ti no tempo certo, no fim da cegueira, todos se dobrarão. Ainda não posso te ver, mas sinto o seu coração bater e o seu perfume envolver esta sala vazia quando estou sozinho.

O poder incorruptível vem de onde tu estás, e não há nada que poderá separá-lo de ti. O poder dos homens está sendo disputado por guerras e sangue. Me pergunto: poderão algum dia unir-se a fim de tentar vencê-lo? Nem mil legiões de homens e demônios poderão te tirar de onde estás. 

A glória que flui de teu corpo é mais forte do que os meus olhos podem ver. Se olhar para ti enquanto for homem ficarei cego, arderei em chamas, e virarei um pó. Conto segundo após segundo o tempo que falta para estarmos juntos para todo o sempre. Quero estar lá, juntamente com todos os outros que se curvarão  perante a tua face e te dirão o que tu realmente és.

Para todo o sempre quero estar com você, para que meus dias sejam bons. Também, para que eu sinta o que é amar e ser amado verdadeiramente. Para que eu sinta você nos meus dias de céu azul e nos raios da mais severa tempestade. Não tardes por vir, porque até mesmo as pedras já pedem por sua volta. Não se afaste de mim, pois já não sei dar um passo sequer sem você ao meu lado, e também dentro de mim.

Amém.

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sábado, 17 de maio de 2014

A Vida em Menos de Cinco Segundos e um Bilhete não Lido na Gaveta da Escrivaninha (Unread Letter - IX)



"Ah, meu amigo... No fim das contas, você sabia que nunca daria certo. Aquela ultrapassagem em curvas contra o sol era um pedido de joelhos para destracionar a sua vida. O que seria capaz de fazer para pôr tudo no lugar novamente? Eu arrisco três palpites. Na primeira das hipóteses, você tenta dar tudo de si, e pisa fundo. Não importa se a sua energia vai acabar, ou se você vai desgastar. É o que todo mundo acaba fazendo, com o pé firme para não cair. Se der a volta por cima, é possível dar um sorriso sincero sem maiores esforços outra vez. Mas os mais sonhadores acreditam que se pode voltar atrás. É estranho pensar em dar uma freada brusca em plena curva para voltar à situação anterior, mesmo estando apenas com meio caminho andado. Gente realista chamaria isso de atitude imbecil. Em última - ou na pior - das hipóteses, você poderia colidir com o outro. Não se sabe o que está vindo ao seu encontro, naturalmente. Mas te garanto: pode ser bem maior que você.
Meu caro, não sei como não percebeu que foi muito rápido. Se fosses um cavalo, estaria morto. Apenas te digo que não precisa se machucar por inteiro para perceber que está na hora de consertar as coisas. Tento imaginar o quão difícil é remoer solitariamente as situações velhas. Sei que o que lembras - ou até encontras em seus arquivos bolorentos - não é coisa para outras pessoas ficarem sabendo mais uma vez. Ninguém se importa (Muito menos com os nomes meio parecidos, que lhe remontam ao inferno). Apenas digo: Escolha bem o seu caminho. Se for adiante, saiba que possivelmente terminará as suas férias sozinho. Se desistir no meio do caminho, talvez seja tarde. Não pense demais, porque não quero que voltes logo para casa (Não nesta noite).
Até mais ver, e um singelo abraço de amigo."

(Unread letters from Joe, 2011)





quarta-feira, 14 de maio de 2014

Café (Short Memories - XVI)



Nada como voltar no tempo, através de velhas cartas. Pode demorar uma eternidade para tudo ficar pronto, é claro. Esse café demorou mais de um ano para ficar palatável! E hoje a mesa está farta. Sentimentos e lembranças boas à mesa. Grama verde, livros grandes de geografia e história e um apetitoso pão de batata. Faz sentido apenas para quem sente. 

Nada como voltar no tempo através daquele perfume. Algo como curiosa, intrigante, ou secreta. Embriaguez ou entorpecência qualquer me faria sentir tão bem quanto me senti naquele abraço, naquela lembrança, que não escrevi sozinho.

Nada é qualquer. O perfume, a avenida, aquele abraço, aquele sonho, o aperto mortal, o pão de batata - pra que tanto insistir? - o café quente, forte e com pouco açúcar. Sequer o lugar foi qualquer. Longe, no passado ou no futuro. Todos já sabiam no que um devaneio desses poderia resultar. Não importa.

Nada como saber que não estou só, e que quem me dá o prazer de sua presença também veio para o café. Não andamos mais de bicicleta atrás de pessoas perdidas, ou a pé após musicalizarmos uma vida em preto e branco com compositores que sequer imaginamos conhecer, ou escondidos de todos para fugir de nossos fantasmas. Mas conseguimos voltar ao passado, e hoje isso é o que mais importa.

(Short Memories, Gabriel Derlan)



sexta-feira, 9 de maio de 2014

Alpargatas (Short Memories - XV)



Na porta de meu apartamento, um par de belas alpargatas 35. Algo fino, diferente. Tentei fazer com que passassem desapercebidas, mas acabei por tropeçar, e tombar. Malditas alpargatas azuis! Foram amor à primeira vista na véspera de minha fuga. Poderiam ter marcado muito menos do que meu nariz com o canto da estante em frente à porta. Ao contrário, me renderam boas memórias, o que não julgo bom quando não se pode voltar. Mas elas me dão a chance, ao menos de guardá-las para lembrar de vez em quando que elas não se importam nem um pouco. Elas são alpargatas e alpargatas não pensam. Pode até ter sido feitiço aquilo parar à minha porta num tempo em que eu realmente precisava encontrá-las enquanto tentava me esconder em uma solidão pretensiosa. Hoje em dia, abro aquela velha sapateira a fim de espiá-las por alguns instantes. Maldito par de alpargatas: mal lembram de mim! Talvez porque brinquei de um faz de conta egoísta, e a escondi lá no fundo para que o mundo todo não pensasse que a roubei só para mim. Quando a escondi o coração apertou, e lá no fundo alguma lágrima deve ter ousado se formar no meio de tanto medo e ansiedade. Sejam felizes, sendo apenas uma lembrança boa, alpargatas.

(Short Memories, Gabriel Derlan)