quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Who We Are - I



É uma madrugada como todas as outras. Quem me dá o sono é uma taça e meia de um bom e puro vinho. Quem me acalma é a prece. E em alguns segundos despenco em um sonho onde tudo está por um fio. Uso minha calça predileta, uma camisa branca com gola e botões em azul e caminho em direção ao meu casaco, que relaxadamente deixei no porta chapéu na entrada do apartamento.

A cada passo que dou, sinto que meu corpo se transforma. Me sinto mais jovem, mais fraco, mais imaturo. Ao colocar as mãos em meu casaco, preciso apoiar-me no trinco da porta e percebo que já não sei andar. Ridículo para um cavalheiro em meados de quatro décadas.

Meu chão se transforma em um mar e sou afogado por uma miserável dama de pés sujos a quem confiei as minhas chaves.

Não posso deixar ser morto por ela.

Quando olho ao meu redor, vejo um cenário de guerra. Uma batalha que desde o começo já está perto do fim - pelo menos em minha mentira, uma espécie de conforto. Meus discos estão ao chão, minha garrafa de vinho quebrada, e os sentimentos de uma vida toda prostituídos a um ódio sem remédio, fruto daquele olhar provocante com leve gosto de vitória.

Ao tentar feri-la com um dos estilhaços de tudo o que deixei cair por tamanho descuido, acordo. Acordo e vejo que não foi desta vez, mesmo depois de quase três décadas dessa rotina suja. Mesmo depois de ter perdido quem amo sem encontrar o verdadeiro perdão em uma correspondência roubada.

Acordo e vejo que a minha única certeza ainda não me matou.

(Short Memories, Gabriel Derlan)