"Quem sabe tiveram mil e um
motivos para recusar tal devassidão escrita, sequer compreendendo a vírgula no
final de uma história tão perdida, entre mil e um amores falsos, moralismos
defasados e fatos mal contados. Fui convencido de que o erro que me perseguia
haveria de me pegar cedo ou tarde. Passei a viver um desamor diário, fugindo de
mim mesmo minuto a minuto, amor após amor. Não adiantaria nada declarar-me
nestas condições. De que valeria uma nobre dama em minha companhia se eu não
seria capaz de dar a ela todo o amor merecido? Não pensava em ser a causa das
lágrimas de ninguém tão nobre. Por essas e outras, entreguei-me ao maldito pó,
que me consumia dia após dia, a ponto de desvairar-me em mundos completamente
diferentes do meu. Sim, em meio a uma nuvem de pó branco no meu
apartamento, daria um último suspiro, e um sorriso em direção à fresta de luz
de minha janela. Seria um último pôr do sol, fazendo o que mais me tranquiliza.
Aquela carta à minha amada nunca chegou a quem deveria ter chegado, quanto mais
a resposta! Este pobre animal viu-se abandonado pelas ruas, até ser recolhido
por uma pá de ouro e colocado dentro de uma jaula. Pobre Joe! Mal sabia que
declarar os meus sentimentos puros em um mundo de cinzas poderia ter feito a
diferença. Não confiei em mim, tal como fizeram todos a minha volta, exceto
aquelas vozes e vultos com quem eu amava trocar ideias ocasionalmente. Pude
viver um belo amor em minhas ideias, beijei por cartas, tive uma overdose, ouvi
boa música, e agora quero descansar, talvez naquele banco no qual me sentei com
meu velho amigo, que agora não serve a mais ninguém. Nenhum lugar passa a ser o
mesmo depois que quem se ama vai embora. Sim, alguém não cuidou-se em sua
carreira, e foi embora cedo também. Velhos amigos me traíram também, por amores
baratos, e foram embora, mesmo continuando vivos. Quero voltar para casa, hoje
talvez. Não é tão terrível dar-me ao luxo de outro estado ébrio. Talvez seja
isso que está escrito naqueles cartões amarelos que quem me controla segura na
mão. A verdade é que eu sinto as correntes de uma vida premeditada apertar os
meus pulsos, mas a essas horas, é difícil voltar atrás. Não há mais tempo de
declarar um amor, de cantar uma bela canção ou escrever uma carta com boas
palavras. Quem sabe em algum momento ouça uma grande explosão de um duto de
gás, e eu volte à minha nobre infância, correndo à beira da estrada tentando
encontrar o meu caminho, e dê valor ao por do sol, que me dirá a hora de voltar
atrás. Enquanto isso ficarei por aqui, a escrever cartas não lidas da antessala
de meu destino a algum bom amigo em um futuro próximo. Até mais ver!”
(Unread letters from Joe, 2011).