sexta-feira, 9 de maio de 2014

Alpargatas (Short Memories - XV)



Na porta de meu apartamento, um par de belas alpargatas 35. Algo fino, diferente. Tentei fazer com que passassem desapercebidas, mas acabei por tropeçar, e tombar. Malditas alpargatas azuis! Foram amor à primeira vista na véspera de minha fuga. Poderiam ter marcado muito menos do que meu nariz com o canto da estante em frente à porta. Ao contrário, me renderam boas memórias, o que não julgo bom quando não se pode voltar. Mas elas me dão a chance, ao menos de guardá-las para lembrar de vez em quando que elas não se importam nem um pouco. Elas são alpargatas e alpargatas não pensam. Pode até ter sido feitiço aquilo parar à minha porta num tempo em que eu realmente precisava encontrá-las enquanto tentava me esconder em uma solidão pretensiosa. Hoje em dia, abro aquela velha sapateira a fim de espiá-las por alguns instantes. Maldito par de alpargatas: mal lembram de mim! Talvez porque brinquei de um faz de conta egoísta, e a escondi lá no fundo para que o mundo todo não pensasse que a roubei só para mim. Quando a escondi o coração apertou, e lá no fundo alguma lágrima deve ter ousado se formar no meio de tanto medo e ansiedade. Sejam felizes, sendo apenas uma lembrança boa, alpargatas.

(Short Memories, Gabriel Derlan)